Um rio nunca é o mesmo..


EU... caçador(a) de mim


O fator tempo muda de forma irreversível um objeto ou entidade...

e o que pensamos ser a mesma coisa, só porque tem o mesmo nome, na realidade é algo em fluxo contínuo de mudança.

Compartilho o meu olhar...o meu olhar mutante.

novembro 30, 2007

Uma crônica muito bonita...verdadeira? não importa!
Nos faz repensar sobre as crianças que encontramos nos faróis das grandes cidades.


AMOR COMO SANTO DE FRENTE
Soraia Saura

Cena cotidiana no centro de São Paulo: farol vermelho,
duas amigas dentro de automóvel simples, carros por
todos os lados. Estes multiplicam-se incansavelmente
nesta cidade casada com a Loucura. A visão do
inferno pode bem ser esta mesmo: 30 minutos no
mesmo lugar, no carro, sem rádio e a criança em casa
te esperando chegar. Mas o caso agora é asfalto para
o trabalho, óculos escuros que a vista anda mais
sensível nos últimos tempos por inexplicável motivo,
incrivelmente animadas neste mundo de maravilhas,
mais um dia, graças a Deus.


Assistem o aproximar de meninos de rua: pequeno
bando sujo, aos farrapos, estatura baixa, valentes,
brabos, fazendo miséria entre os vulneráveis
motoristas imobilizados pelo farol e pelo medo – gente
do bem, cada um cuidando de si e sem querer nada de
ninguém. Moleques malvados, garrafa de cola, cheiro
de bueiro, descalços e ágeis, morenos e pretos,
roupas gigantes que escondem objetos cortantes, nada
a perder, clamando o vale tudo do mundo como
deuses sem fé, muito poderosos, muitos,
muitos e por todos os lados.


Nossas janelas estão abertas para o mundo e para eles
e assim, para esta barulhenta e ameaçadora chegada,
aproximação confusa, certa e rápida. Solitárias em
meio aos outros carros, fechados, insufilmados,
envidraçados, todos a nos olhar com pena e pesar,
que descuido estas meninas, tão lindas. Fechem os vidros
meninas, fechem os vidros, dizem com os olhos.
“Não feche o vidro”. Não feche o vidro. E no mesmo instante
os menores já cercaram o carro em grande burburinho,
sobrancelhas cerradas, quanto menores mais agressivos,
sobrevivência nos olhos e um baixo tom impositivo na voz:
“dá o dinheiro aí”.


Respiração curta, sem saída, a amiga prende o ar.
E em fração infinitesimal de segundo –
esta que não pode ser quantificada nem medida,
que costumamos ignorar em grande erro, porque aí
é que se operam as grandes transformações da humanidade –
tira voz do fundo da alma, bem verdadeira:
“Dinheiro não dou, mas beijo dou”.


Que grande alegria, que grande festa chamada Festa
de distribuição de beijos na janela no sol na manhã.
Crianças aos montes na moldura aberta da vida,
meninos grandes e pequenos, de chupeta, chupando dedo,
fila, os de longe vindo perto, se é beijo também quero,
é beijo que está dando, primeiro eu, primeiro eu,
bicos e estalos para todos de sorriso largo,
ajeita o cabelo de um, a sobrancelha de outro,
o sujo da sua bochecha, mais beijos, muitos beijos,
beijos aos montes, kilômetros e kilômetros de beijos,
ataque violento de beijos para todos, moleques,
vocês merecem beijos.
É festa, é festa no centro da cidade.


Os motoristas olham atônitos e incrédulos,
esqueceram até que tinham pressa, essa é a revolução de beijo,
operando transformação com pequenos gestos e muita humanidade.
Talvez um dia morreremos assim: heróicos de amor e credo na vida,
mas não hoje. Hoje o farol abriu e todos acenam em despedida
– Tchau tia, obrigado! – inchados de coragem e crença no bem,
a vida sem mãe faz medo, envidraçados fazem medo - abriu sinal,
o mundo se movimenta, e nós entupidas de beleza e miséria,
amor e pobreza do mundo, consolo a amiga: eu tinha medo,
eu tinha tanto medo, e eles preferiram os beijos, eles queriam beijos,
eles não ganham beijos - eu sei, eu sei, todo mundo sabe,
mas não quer saber que o cheiro da rua pode entrar
no carro e o cheiro do carro pode sair para a rua.

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