Um rio nunca é o mesmo..


EU... caçador(a) de mim


O fator tempo muda de forma irreversível um objeto ou entidade...

e o que pensamos ser a mesma coisa, só porque tem o mesmo nome, na realidade é algo em fluxo contínuo de mudança.

Compartilho o meu olhar...o meu olhar mutante.

janeiro 17, 2008

A BARBIE


(de Rubem Alves, em Teologia do Cotidiano)

Fiquei comovido quando li que foram encontradas bonecas em túmulos de
crianças no Egito, na Grécia e em Roma. Pude imaginar o que os pais deveriam
estar sentindo ao colocar aquele brinquedo junto ao corpo da filha morta.
Eles o faziam para que ela não partisse sozinha, para que ela não tivesse
medo...
De fato, uma criança abraçada a uma boneca é uma criança sem medo, uma
criança feliz. Os meninos, proibidos de ter bonecas, se abraçam aos seus
ursinhos de pelúcia. E nós, adultos, proibidos de ter bonecas e de ter
ursinhos de pelúcia, nos abraçamos ao travesseiro... Os objetos são
diferentes, mas o seu sentido é o mesmo: o desejo de aconchego e de ternura.

Por isso eu acho que o senhor e a senhora fizeram muito bem ao dar uma
boneca de presente para a sua filhinha.
Com uma exceção, é claro: se a boneca não foi a Barbie. Porque a Barbie não
é uma boneca. Falta a ela o poder que têm as outras bonecas, bebezinhos, de
afugentar o medo e provocar sentimento maternais de ternura. Não posso
imaginar uma menina dormindo abraçada à sua Barbie. Nenhum pai colocaria a
Barbie no túmulo da filha morta.

A Barbie não é boneca. É uma bruxa.

Posso bem imaginar o espanto nos seus olhos. Eu imagino também os seus
pensamentos: O Rubem perdeu o juízo. A Barbie é unta boneca de plástico, não
mexe, não pensa, não fala. E agora ele diz que ela é uma bruxa...
Que as bonecas, ao contrário das aparências, têm uma vida própria, eu
aprendi no 2° ano primário. Minha professora me deu um livro sobre bonecas e
bonecos: enquanto a gente estava acordado, elas ficavam deitadinhas,
olhinhos fechados, fingindo que dormiam. Mas bastava que os vivos dormissem
para que elas acordassem e se pusessem a falar coisas.

As bonecas foram os primeiros brinquedos inventados pelos homens.
E foram também os primeiros instrumentos de magia negra. Um alfinete,
aplicado no lugar certo de uma boneca – assim afirmam os entendidos – tem o
poder de matar a pessoa que se parece com ela.

Pois eu digo que a Barbie é uma bruxa. Bruxa enfeitiça. Enfeitiçada, a
pessoa deixa de ter pensamentos próprios. Só pensa o que a bruxa manda. A
pessoa enfeitiçada fica possuída pelos pensamentos da feiticeira e só pensa
e faz aquilo que ela manda.
Se falo é porque vi, com esses olhos que a terra há de comer. Basta que as
crianças comecem a brincar com a Barbie, para que fiquem diferentes. O pai
manda, a mãe manda, a criança faz birra e não obedece. Não é assim com a
Barbie. Basta que a Barbie mande para que elas obedeçam.
De novo você vai me contestar, dizendo que a Barbie não fala e não tem
vontade. Por isso não pode nem dar ordens e nem ser obedecida.
Errado. O fantástico é que ela, sem falar e sem ter vontade, tenha mais
poder sobre a alma da criança que os pais. Quem me revelou isso foi o
futurólogo Alvin Toffler, no seu livro O Choque do Futuro, que li em 1971. O
capítulo “A Sociedade do Joga-Fora” começa com a Barbie. Nascida em 1959, em
1970 mais de 12 milhões já tinham sido vendidas. Um negócio da China. E por
quê? Porque a Barbie, diferente das bonecas antigas, bebês que se contentam
com uma chupeta e um chocalho, tem uma voracidade insaciável. A Barbie é uma
boneca que nunca está contente: ela sempre pede mais. E essa é a grande
lição que ela ensina às crianças: Compra, por favor!

Para se comprar há as roupas da Barbie, a banheira da Barbie, o secador de
cabelo, o jogo de beleza, o guarda-roupa, a cama, a cozinha, o jogo de sala
de estar, o carro, o jipe, a piscina, o chalé de praia, o cavalo e os
maridos, que podem ser escolhidos e alternados entre o loiro e o moreno etc.
etc. A Barbie está sempre incompleta. Portanto, com ela vem sempre uma
pitada de infelicidade. Aliás, essa é a regra fundamental da sociedade
consumiste: é preciso que as pessoas se sintam infelizes com o que têm, para
que trabalhem e comprem o que não têm. A Barbie tem esse poder: quem a tem
está sempre infeliz porque há sempre algo que não se tem, ainda. E os
engenheiros da inveja, a serviço das fábricas, se encarregam de estar sempre
produzindo esse novo objeto que ainda não foi comprado. Mas é inútil
comprar. Porque logo um outro será produzido. É a cenoura na frente do
burro... Ela nunca será comida.

Quem dá uma Barbie para uma criança põe a criança numa arapuca sem saída.
Porque, ao ter uma Barbie, ela ingressa no Clube das Meninas que têm Barbie.
E as conversas, nesse clube, são assim: Eu tenho o chalé de praia da Barbie.
Você não tem. Ao que a outra retruca: – Não tenho o chalé, mas tenho o
marido loiro da Barbie, que você não tem.

Essa é a primeira lição que a inofensiva boneca de plástico ensina. Ensina a
horrível fala do eu tenho, você não tens. A maldição das comparações. A
maldição da inveja. Você deve conhecer alguns adultos que fazem esse jogo.
Haverá coisa mais chata, mais burra, mais mesquinha? Ao dar uma Barbie de
presente é preciso que você saiba que a menina inevitavelmente aprenderá
essa fala.
Isso feito, uma segunda fala entra inevitavelmente em cena, impulsionada
pelas ilusões da inveja. A menininha pensa: Estou infeliz porque não tenho.
Se eu tiver, serei feliz. O jeito de se ter é comprar.
– Papai...
– Que é, minha filha?
– Compra o chalé de praia da Barbie? Eu quero tanto...

Filha na arapuca. Pai na arapuca.
Mas há uma saída. E, para ela, procuro sócios. Vamos começar a produzir o
próximo e definitivo complemento para a bruxa de plástico: urnas funerárias
para a Barbie. Por vezes o feitiço só se quebra com o assassinato da
feiticeira – por bonitinha que ela seja...

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